Bem me quer

Bem me quer

Por Janaina Langsdorff

 

A responsabilidade social já praticada no franchising pode ajudar ainda mais a diminuir as desigualdades do Brasil

A renda dos brasileiros mais pobres (5%) diminuiu 3,2% (para R$ 153 em média por mês) em 2018. Já os mais ricos (1%) passaram a ganhar 8,4% a mais (R$ 27.774) no mesmo período, acumulando rendimentos que chegam a ser 33,8 vezes maior que a média dos 50% mais pobres. Recorde histórico na série apurada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNADC) do IBGE desde 2012, a disparidade transforma as iniciativas sociais capitaneadas pelo mundo corporativo em um alento para a população carente.

Mas a redução das diferenças é uma bandeira que precisa estar genuinamente enraizada na cultura das empresas para que possa ser replicada.

“Empreendedores e franqueadores têm papel fundamental. Se quem comanda não se importa com a diminuição da desigualdade social e econômica, dificilmente a empresa e a rede de franquias vai incorporar esses valores”, constata o consultor Paulo Ancona.

Políticas, manuais e treinamentos endossados pelos próprios donos dos negócios têm o poder de mudar a realidade do mercado de trabalho.

A força dos franqueadores é ainda maior. “A mesma capilaridade que permite ao franchising ter historicamente um desempenho melhor do que o PIB, possibilita gerar empregos, movimentar a economia e diminuir desigualdades”, compara Ancona.

A escolha de uma causa genuína deve levar em consideração a cultura, a missão e os valores da rede. Buscar projetos alinhados aos benefícios de produtos e serviços comercializados pela franquia são outras prerrogativas que precisam ainda contar com parceiros e organizações confiáveis.

“O segmento de mercado atingido deve ser sensível à causa. E o apoio deve ser contínuo, e não algo pontual, para assegurar a relação. Do contrário, costumam gerar erros e perdas de tempo e de recursos”, ratifica Daniel Alberto Bernard, diretor-geral da Netplan Consultoria.

Marca que apoia a causa certa cai não só nas graças, mas também no bolso dos consumidores. Cada vez mais, as pessoas dão preferência a produtos vindos de empresas socialmente responsáveis.

“É possível inferir que uma parcela da população já leva o consumo responsável em conta no momento de escolher uma marca, principalmente os mais jovens”, confirma Ancona. Mas será que as marcas sem propósito estão com os dias contados? A cobrança tende a ser maior e alguns movimentos de boicote começam a extrapolar os limites de nichos restritos. Fica a reflexão.

De propósito

Algumas redes criaram institutos ou organizações sociais sem fins lucrativos com o objetivo de resolver problemas que, separadamente, o governo, a iniciativa privada e a sociedade ainda não conseguiram solucionar.

Criado em 2004, o Instituto Grupo Boticário é um exemplo. Entre beneficiários diretos e indiretos, mais de 800 mil pessoas já foram impactadas por meio do apoio a um total de 47 projetos sociais, culturais e esportivos que empregaram mais de quatro mil profissionais apenas em 2018.

Cerca de 200 refeições diárias foram distribuídas no ano passado a crianças e adolescentes de 5 e 13 anos de idade em situação de vulnerabilidade social atendidas pela associação Passos da Criança, que atua na comunidade Vila Torres, em Curitiba (PR). A maior rede franqueada do Brasil bate bola também com o Instituto Futebol de Rua. Mais de dez mil crianças e adolescentes entre 7 e 17 anos de idade já foram atendidos no Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo desde 2006.

Na área cultural, uma das parcerias é com a organização social Gerando Falcões, que atua desde 2011 nas periferias de São Paulo. Nos últimos cinco anos, mais de 33 mil pessoas foram assistidas. A atuação se estende ainda para a promoção de espaços culturais – O Mundo do Perfume (SP), Teatro Dr. Botica (SP), Teatro de Bonecos Dr. Botica (PR) e Espaço Histórias Grupo Boticário (PR) – que já receberam mais de 750 mil visitantes em 2018.

“Além de levar encantamento para a sociedade, trazemos a magia e disseminamos a cultura e os valores do Grupo Boticário para nossos colaboradores e franqueados”, diz Malu Nunes, diretora-executiva do Instituto Grupo Boticário.

Gesto doce

Quarta maior franquia do Brasil, com 2.250 lojas e faturamento de R$ 3,5 bilhões em 2018, a Cacau Show atua por meio do Instituto Cacau Show (ICS), que já disponibilizou atividades educacionais, esportivas e culturais para mais de 3,4 mil pessoas, entre crianças e adolescentes do município de Itapevi (SP), onde está localizada a sua sede administrativa e industrial.

“Temos um plano estratégico para os próximos cinco anos, revisado periodicamente para adequação às novas necessidades e estamos trabalhando em um programa para desenvolvimento de indicadores”, conta Clóvis Madeira, presidente do ICS, que nasceu em 2009 inspirado na ideia de aproveitar a quadra poliesportiva da fábrica de Itapevi para oferecer, no contraturno escolar, ações aos alunos regularmente matriculados em escolas públicas.

Entre os projetos conduzidos por 50 profissionais, dos quais 40 são educadores, estão os programas Infância, voltado para crianças de 6 a 13 anos, é baseado na pedagogia de Paulo Freire e do médico e educador Janus Korczak; Inspire Jovem, que promove desenvolvimento social, educacional e profissional para jovens; Jovem Aprendiz, que segue lei federal cuja meta é aumentar as oportunidades de inserção no mercado de trabalho. O ICS apoia ainda a implantação do ensino integral na rede pública municipal de Itapevi para o Ensino Fundamental I, por meio da contratação de consultoria especializada neste tipo de projeto.

Puxando a corrente

A 28ª edição da ABF Franchising Expo, realizada no Expo Center Norte (SP) em junho de 2019, expôs ações lideradas pelo Grupo Incense, com o programa de capacitação profissional para jovens ChamaViva Perfume do Conhecimento – Mentoria Social em Franchising, feito em parceria com a Obra do Berço; pelo projeto Recomeçar, organizado pelo Gerando Falcões para egressos do sistema carcerário; pelo Instituto CNA, que encampa a causa da educação, e pelo Instituto Ronald McDonald, que defende a causa da oncologia pediátrica.

O Boulevard Social da ABF ainda contou com a presença dos Amigos do Bem, que já transformou a vida de mais de 75 mil pessoas nos estados de Alagoas, Ceará e Pernambuco com projetos educacionais e autossustentáveis. Em 2017, a parceria da organização com a ABF somou uma arrecadação de mais de R$ 110 mil, valor aplicado em equipamentos para uma fábrica de beneficiamento de castanhas, gerando emprego e renda na região.

Desde 2016, a ABF e os Amigos do Bem organizam caravanas ao Sertão, incentivando o engajamento de líderes ligados à entidade em ações capazes de fomentar novos projetos de formação e capacitação. A entidade ainda estimula os seus associados a fazerem doações com o objetivo de manter as crianças e adolescentes acolhidos nos centros de transformação dos Amigos do Bem.

“As iniciativas gerais na área de responsabilidade social vêm ganhando algum espaço, mas ainda estão longe de atender as demandas sociais num País carente de ações públicas como o nosso”, avalia Clóvis Madeira, presidente do Instituto Cacau Show (ICS). O consultor Paulo Ancona lembra que é importante trabalhar com todos os públicos da empresa – produtores, fornecedores, clientes, concorrentes, governo, sociedade, ambiente, colaboradores, sócios, parceiros, franqueados, investidores – e não só com as comunidades para que a gestão social seja verdadeiramente incorporada. “Os franqueadores devem atuar como líderes, puxando a transformação positiva da sociedade”, ressalta Ancona.

Não adianta doar dinheiro para supostos parceiros e ignorar a realização das ações. “As causas defendidas pelas empresas devem chegar, na prática, a serem observados pelo público, para que não pareçam mera demagogia”, adverte Ancona. O descontrole dos projetos é um dos fatores que podem fazer com que as iniciativas se percam. Além da falta de comunicação de ações implementadas, as (falsas) propagandas de projetos não concretizados e a prática de valores que não fazem parte do dia a dia da empresa são outros motivos para o descrédito.